🩸 “Raízes da Sombra” — Parte I: O Canto da Predadora
A névoa dançava entre os pinheiros como dedos frios procurando pele exposta. Jack, machado sobre o ombro, contemplava a árvore recém-cortada — velha, imensa, com seiva escura escorrendo como sangue coagulado. Ao lado da cicatriz no chão, cavou um pequeno buraco e plantou um broto. Shadow, seu fiel labrador preto, farejava o ar inquieto, os pelos do dorso arrepiados.
— Equilíbrio, amigo, — sussurrou Jack. — A floresta dá. A floresta toma.
Mas algo naquela manhã parecia... errante. O silêncio não era natural. Era tenso. Prensado.
Foi quando a neblina se moveu como uma cortina puxada por mãos invisíveis. E dela emergiu Oly.
Vestia um longo casaco negro, justo na cintura, como se feita de sombra e porcelana. Seu cabelo era de um loiro quase branco, e sua pele, pálida e perfeita, parecia brilhar no ar turvo. Seus olhos — de um azul glacial — prenderam Jack imediatamente, como se o estudassem.
— Bom dia, — disse com um sorriso doce. — Não esperava encontrar outra alma por aqui.
Jack a observou em silêncio por um instante, surpreso pela beleza e pela presença quase etérea.
— Essa parte da floresta... não costuma receber visitas. É perigosa.
Oly se aproximou devagar, os pés leves, sem um som sequer.
— Às vezes, o que é perigoso é exatamente o que nos atrai... não acha?
Shadow rosnou baixo. Jack franziu o cenho.
— Ele não costuma reagir assim às pessoas.
Ela se abaixou diante do cão e tocou sua cabeça. Shadow recuou, inquieto — mas se calou.
— Nem todas as pessoas são o que parecem, Jack.
A forma como disse seu nome fez com que um calafrio percorresse sua espinha.
— Como sabe meu nome?
Ela sorriu, os lábios carnudos, quase inocentes.
— A floresta sussurra nomes aos que sabem escutar.
Ele deveria ter desconfiado. Mas não conseguiu. Algo nela era hipnótico — sua voz, seu cheiro... seu olhar.
Passaram horas juntos. Ela lhe contava histórias antigas da floresta, de rituais esquecidos, de árvores que choravam em noites de lua nova. Jack a ouvia como quem bebe vinho enfeitiçado.
Ele não sabia que, naquela noite, estava sendo caçado.
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🩸 Parte II: A Última Semente
O sol caía quando Oly o guiou a uma clareira.
— Aqui é onde as raízes tocam os ossos dos antigos, — ela disse, olhando o céu escurecer. — Quer ouvir o que elas dizem?
Jack estava fascinado. Não percebia a escuridão invadindo seu juízo.
Ela tocou seu rosto, com ternura quase religiosa.
— Você é diferente. Tem terra nos dedos e remorso no coração. Homens assim têm um gosto... raro.
— Como é? — ele murmurou, confuso.
E então viu.
Não nos olhos dela — mas no reflexo em uma poça d’água perto de seus pés.
Ela não tinha reflexo.
O tempo pareceu congelar. A névoa engoliu o mundo.
— O que você é...? — ele sussurrou, dando um passo atrás.
Ela suspirou. Longo, triste, quase carinhoso.
— Eu sou o que resta quando o amor pela vida vira fome por eternidade.
Dentes. Perfeitos, brancos, lancinantes. Os caninos cresceram como presas ocultas há séculos.
Jack tentou correr — mas já era tarde.
Ela o agarrou com força sobrenatural, derrubando-o entre folhas e lama.
— Você plantou uma árvore, Jack... Agora eu planto outra coisa em você: silêncio eterno.
A mordida foi delicada como um beijo. Mortal como uma sentença.
Shadow uivou. Mas não atacou. Porque sabia: a floresta escolhe seus mortos.
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🌑 Epílogo
Na manhã seguinte, havia um novo broto ao lado do antigo.
E ao lado dele, duas pegadas descalças marcadas no barro, indo em direção à floresta — e desaparecendo.
Jack nunca mais foi visto. Mas às vezes, à noite, os caçadores juram ouvir um machado batendo, bem fundo na mata. E uma voz feminina, doce como veneno, cantando entre os galhos:
— A floresta dá... a floresta toma...
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